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Rute Simões Ribeiro

O Escritor e o Prisioneiro

edições humanistas | Da Permanência e Dúvida

Texto de narrador que se procura discreto, quase ausente, entregando apenas indicações de tipo cénico, O Escritor e o Prisioneiro trata do conflito interno de um prisioneiro chamado Tom perante o seu médico psiquiatra, a quem solicita ajuda, por desconfiar da sua própria lucidez. Através de um quasi-monólogo, Tom narra os eventos que ocorreram dentro da prisão, ao mesmo tempo que confessa os questionamentos e as dúvidas que esses acontecimentos provocaram nele. Nesta exposição, fala obsessivamente de Otto, um escritor prisioneiro, que o agita e será talvez o causador dessa possível loucura, que procura esclarecer numa conversa onde se confundem intenções e identidades. 

«Era branca, como a bata branca que havia de estar por detrás dela. Lançou-lhe os nós dos dedos, de mão aberta. Duas vezes, que faziam uma. E outra vez. Só depois desta, ouviu o chiado do cadeirão livre do peso do convocado do outro lado, que se admitia a resposta. A porta aberta, que era a esperança.
— Então?
— Doutor, como vai (O que disse sem interrogar).
Desfez a surpresa, poupando os dois ao tempo que era desnecessário.
— Era preciso saber se não estou louco.
— O médico ergueu um sorriso clínico e mandou-o entrar.
— Senta-te.
— (Sentou-se) Tenho estado a pensar nisto e preciso claramente de experimentar em si algumas dúvidas. Importa-se que fume (Afirmou, esperando que o médico o contrariasse).
O médico estendeu a mão em direção ao cinzeiro sobre a mesa que apoiava o cadeirão onde se sentara o paciente.
— (Acende o cigarro e adianta) Havia muito silêncio, percebe. E muito tempo. E até o tempo que era dos hábitos deixou de ser dos hábitos e já era também da cabeça. Dediquei todo o tempo a ponderar sobre o que me rodeava. Receio que tenha sido demasiado.
— E em que pensavas tu?
— De início, pensava no que havia fora dali. Depois, o que havia ali dentro também passou a ocupar-me. É possível que tenha passado a confundir-se com a minha própria vida. A partir daí, tudo começou a ficar confuso. Os assuntos de fora nada tinham a ver com os de dentro e, no entanto, pareciam associar-se. Eu não queria pensar no que se passava ali dentro, mas era já só nisso que conseguia pensar. Considerei até que o que havia cá fora já não me dizia respeito. Julgo que foi nesse momento que passei a pertencer ali. Mas até para pertencer a algum sítio, é preciso sair dele por vezes, não acha. Eu pedi para sair. Para que pertencesse ali. Não me deixaram e creio que isso me enlouqueceu. Era preciso saber isso, percebe. (Respira) O que é preciso que eu lhe diga para que possa concluir alguma coisa?
— O que havia lá que te fizesse pensar mais do que te parece razoável?
— Havia um homem. Um escritor.»

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